CRÓNICA DE BENTO DOMINGUES
NO PÚBLICO
1. Encontrei, na escadaria da Igreja
de Santo Ildefonso (Porto), um senhor que, de costas para o templo, aproveitou
para descarregar sobre mim não só o habitual anticlericalismo nortenho, mas
também o seu desprezo agressivo pelas religiões, frutos do medo, da ignorância
e da sacralização da maldade humana.
O Islão é um ninho de criminosos, o
Judaísmo, uma rede dos bancos norte americanos, o Cristianismo, um mundo
caótico de divisões em cascata, piorando sempre a configuração anterior. O papa
Francisco chegou demasiado tarde para salvar a face de um catolicismo que a
própria Europa já rejeitou. Etc.! Se as instituições e os serviços sociais da
Igreja ajudam muita gente a aguentar a pobreza e a miséria, não revelam nem
combatem as suas causas reais. Pelo contrário, ajudam-nas a sobreviver.
Estranhei que não terminasse a sua
diatribe com a fórmula habitual, em circunstâncias análogas: Cristo, sim;
Igreja, não! No caso referido, foi Cristo que pagou todas as despesas à base de
especulações teológicas e cristológicas.
Este senhor mostrou detestar as
narrativas do Novo Testamento (NT). Aquelas propostas, parábolas,
controvérsias, milagres e discursos são delírios absolutamente inaplicáveis. Se
Jesus Cristo fosse, de facto, um enviado de Deus vinha com ideias claras e
distintas acerca do passado, do presente e do futuro, da natureza e da
história. Substituiria a Bíblia por um tratado divino e infalível de ciência,
de sabedoria e de ética, com manual de correcta utilização para todas as
circunstâncias.
2. Aquilo que Jesus introduziu de
mais perturbador no mundo religioso, económico, social e político do seu tempo,
foi a insegurança: não oferecer respostas pré-fixadas para todas as situações e
interrogações da vida. Pelo contrário, semeou dúvidas, inquietações e possíveis
alternativas a um universo bem organizado e com respostas para sempre, “em nome
de Deus”. As tentativas de reduzir os Evangelhos a dogmas e a tratados
teológicos bem articulados, sem falhas, nunca poderão funcionar bem enquanto
houver possibilidade de confrontar essas certezas com as narrativas da
liberdade de Deus e da liberdade humana. A tentação que não nos abandona é a de
procurar rapidamente a lição, moral ou dogmática, que encerram. O resto parece
acidental. O inconveniente desse método é de perder precisamente o essencial.
Dispor de uma resposta para uma pergunta que não se conhece, e sem olhar para o
contexto de onde nasceu, é o caminho mais rápido para o dogmatismo insensato. É
assim porque é assim e sempre assim foi, pelos séculos dos séculos, de outro
modo, como iriamos saber que é a vontade de Deus?
O estilo de Jesus, pelo que podemos
conhecer nos Evangelhos, não é o de um professor que ganhou uma cátedra, num
concurso universitário, apresentado, para as suas intervenções, como Senhor
Professor Doutor Jesus de Nazaré.
O Nazareno é constantemente
surpreendido por interrogações e problemáticas de escribas e fariseus, com o
propósito de o deixarem embaraçado perante os ouvintes e de recolherem
argumentos para o liquidar. Acontece que Jesus não se atrapalha e, vendo as
suas intenções perversas, manda-os bugiar.
Neste Domingo, temos os fariseus e
herodianos a cogitar a forma de o tramarem numa questão melindrosa: é lícito ou
não pagar o tributo a César? Conhecendo Jesus a malícia da pergunta, respondeu:
porque me tentais, hipócritas? Devolveu-lhes a questão: de quem é esta imagem e
inscrição? De César, responderam: então dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus.
Os judeus não podiam cunhar imagens.
A única imagem de Deus é o ser humano.
3. Segundo os meios de comunicação,
o porta-voz da Conferência Episcopal afirmou que os bispos portugueses estão em
sintonia com a linha "inclusiva e de acolhimento" dos homossexuais e
recasados, mas admite que o tema não é consensual.
Consensos absolutos não são de
esperar em assunto nenhum e ainda bem. A clonagem dos cristãos não é
aconselhável. O importante é que a assembleia cristã seja uma família de muitas
famílias que respeite a diversidade, não como um favor, mas como um direito de
todos e um dever de diálogo permanente. Não é a mesma coisa contentar-se com
dizer: cada um que se arranje. Seria a negação da Igreja.
Finalmente, começam a cair alguns
tabus. Muita água ainda vai passar debaixo das pontes até que o horizonte da
Igreja esteja mais desanuviado. Cada grupo continuará a defender os seus pontos
de vista. No entanto, a interrogação que todos se devem fazer, talvez se possa
formular assim: para quê continuar com o sofrimento inútil dos casais cristãos?
O que será preciso alterar nas mentalidades católicas para que a educação
sexual se torne uma exigência inerente ao desenvolvimento da vida humana nas
múltiplas dimensões do amor? Será que ainda existem católicos que acham que
Deus se enganou ao dizer que o ser humano é homem e mulher? Homem e mulher será
o pecado de Deus?
No NT não há nenhuma preocupação em
mostrar se Jesus constituiu ou não uma família. Os textos insistem em algo mais
abrangente: o seu projecto era congregar na unidade todos os filhos de Deus
dispersos (Jo 11, 52).
Seria excessivo pedir-lhe um manual
de moral sexual.
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