segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A INCONSTITUCIONALIDADE DA MORTE

Por, Geraldo João Martins

No dia 4 de Dezembro de 2063, o mundo acordou estupefacto com uma notícia surpreendente – o Supremo Tribunal Planetário declarara a inconstitucionalidade da morte.
Num conclave ultra secreto, a maioria dos treze juízes entendeu haver fundamento suficiente para proferir o inédito acordão.
O argumento apresentado é simples: no mundo dos seres vivos, ninguém quer morrer. Homens, cães, gatos, ratos, todos sonham com a vida eterna. Logo, porque a morte contrária a vontade última de todos os seres vivos, ela é naturalmente um fenómeno inconstitucional.
Não satisfeitos, os juízes opositores indagaram:
– Mas por que carga de água o «direito natural» há-de sobrepôr-se à jurisprudência divina?
A resposta dos juízes reformistas parecia estar na ponta da língua:
– Neste século 21, o mundo caminha irremediavelmente para a «naturalização». A mudança climática está a destruir civilizações; colesterol e bilirrubina destronaram facebook e Real Madrid no topo das palavras mais pesquisadas no google; e a bioquímica tornou-se uma ciência mais importante do que todas as ciências sociais juntas.
Não se desarmando, os juízes opositores lançaram um argumento contundente:
–Mas como ousam os senhores declarar a inconstitucionalidade da morte se o próprio Criador, o Todo-Poderoso, o Omnipotente, determinou o contrário?
A resposta não se fez esperar:
– O mundo virou ao avesso. Os valores estão invertidos. O egoísmo sobrepôs-se à solidariedade. A ganância conquistou direito de cidade. Os bons vão para o inferno. Os maus vão para o céu. Deus deixou de existir.
Entretanto, já se fazia a festa do oriente ao ocidente. À medida que a terra girava à volta do seu próprio eixo, milhões de pessoas regozijavam-se com a tardia mas sábia decisão, enquanto fogos de artifício tomavam conta do céu planetário subitamente clemente.
– Abaixo a morte! – gritavam uns com uma ira acumulada de vários milénios.
–Viva a imortalidade! -- replicavam outros com os dois braços erguidos para cima e os punhos cerrados.
A reação era perfeitamente compreensível. Desde o início da humanidade, a morte sempre fora uma concubina traiçoeira. Sendo inevitável, ela nunca foi simpática com os humanos, nem no seu tempo nem na sua forma. Talvez ela fosse menos ingrata anunciando-se previamente:
–Fulano-de-Tal, tenho o imenso desprazer de lhe comunicar que dentro de alguns dias virei viver consigo para sempre!
Mas não.
O homem de boné branco que acabou de beijar a mulher e assobia alegremente enquanto desce as escadarias do prédio para se dirigir ao escritório, está a cinco minutos de morrer. Ele não o sabe. Ninguém o sabe.
Passava pouco depois das seis da tarde quando numa pequena cidade de África se iniciou uma discussão. Ela foi detonada por uma pergunta simples, colocada por um espírito despido de euforia:
– Qual é o efeito prático da declaração da inconstitucionalidade da morte?
As pessoas calaram se. Um silêncio perturbador tomou conta do ar já poluído de dúvida. Antecipando qualquer resignação à ideia da ressureição da defunta morte, alguém lançou no meio da multidão:
– Ora bolas, que mais podia ser¬? Acabou a morte!
As pessoas voltaram a entreolhar-se, os semblantes transfigurados pelo abalar de uma certeza ténue. No alto da sua sabedoria, um velho baixinho e curvado sugeriu que se tirasse a prova dos nove:
– Liguem as televisões –, gritou com uma voz trémula e pausada.
A multidão precipitou-se para uma varanda alí ao lado onde um rapaz corpulento já ligava um televisor de ecrã plano e gigante. Os olhares fixaram-se no ecrã, rígidos e comoventes, à espera de saber se no extremo oriente, onde a noite já tinha caído há muito tempo, tinha havido um caso de morte.
Mal as luzes do ecrã televisivo cintilaram, viu-se uma maré humana a manifestar-se contra o fim da morte na cidade do México. Convocada pelos alter mundialistas duas horas antes, através do facebook, hi35 e hollofilm, a manifestação juntava mais de um milhão de pessoas que protestavam contra a primazia da morte sobre a pobreza.
Num cartaz que um dos manifestantes brandia podia-se ler:
– Viva la muerte ! Antes la muerte de que la pobreza eterna!
No mesmo instante, a manifestação global varria as cidades de Cape Town, Cairo, São Paulo, Nova York, Londres, Tóquio e Paris. Nesta última, quando a câmara colocou em grande plano um senhor vestido de calças gangas e um t-shirt amarrotado, este agarrou as mãos de um velho mendigo sentado no passeio, ao lado de um grande vasilhame de lixo, e pôs-se a gesticular diante da câmara com uma raiva contida, como que dizendo:
– O que é que preferem? Que este mendigo morra um dia, ou que continue a viver assim para sempre?
Entretanto, na pequena cidade de África, o sol começara a esconder-se no horizonte, deixando para trás ténues raios de luz vermelha. Espontaneamente, várias pessoas se precipitaram para a pequena praça da cidade, enchendo gradualmente todo o espaço circundante. Era uma manifestação pacífica contra a tolerância à morte. Indignados, os manifestantes jubilavam pelo fim da morte e ouviam discursos apaixonados de pessoas que antecipavam como seria a vida a partir daquele momento histórico. Quando uma mulher subiu ao palco e perguntou se a vida eterna não seria cansativa, a multidão reagiu com fúria dizendo que essa pergunta era uma imbecilidade.
De repente, talvez assustados pelo peso gigantesco dos sapatos sobre suas cabeças, os ratos começaram a sair dos esgotos da cidade e a invadirem a praça. Corriam caoticamente de um lado para o outro e vinham de todos os lados como se haviam sido convocados para uma manifestação na mesma praça.
Instantes depois, ocupavam cada centímetro da praça e subiam já sobre os sapatos das pessoas. O pânico tomou conta da praça. As mulheres gritavam desalmadamente. Os homens sacudiam os pés e saltavam para logo depois aterrar sobre os corpos moles dos ratos. A fobia aos ratos dispersou a manifestação dos homens. A correria desenfreada fazia cair homens e mulheres que se deitavam apavorados sobre os ratos e eram pisados por outros homens e mulheres em fuga. Durante cinco minutos foi o caos e, no fim, a praça esvaziou-se ficando nela apenas alguns corpos estatelados no chão.
Um silêncio assombrador voltou a reinar. As ruas estavam desertas. À distância de meia centena de metros da praça, dois homens estavam de pé a olhar ao longe para os corpos no chão. Estarão mortos? Entreolharam-se e, sem dizer nada, perceberam que havia chegado o momento de tirar a prova dos nove.
Começaram a caminhar vagarosamente em direção à praça, os corações a palpitarem de medo. Aproximaram-se com passos hesitantes de um homem que estava alí deitado. A noite já estava a cair. Curvaram-se diante do homem deitado no chão e, inclinando levemente o corpo para a frente, debruçaram-se sobre ele, fixando os seus olhos e perscrutando se nele havia sinal de vida. As pálpebras estavam semi abertas e as pupilas brancas e estáticas reflectiam as luzes pálidas da praça. Os dois homens entreolharam-se novamente sem dizer uma palavra, pois ambos perceberam a sentença:

O homem estava morto.

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