No dia 4 de Dezembro de 2063, o mundo
acordou estupefacto com uma notícia surpreendente – o Supremo Tribunal
Planetário declarara a inconstitucionalidade da morte.
Num conclave ultra secreto, a maioria
dos treze juízes entendeu haver fundamento suficiente para proferir o inédito
acordão.
O argumento apresentado é simples: no
mundo dos seres vivos, ninguém quer morrer. Homens, cães, gatos, ratos, todos
sonham com a vida eterna. Logo, porque a morte contrária a vontade última de
todos os seres vivos, ela é naturalmente um fenómeno inconstitucional.
Não satisfeitos, os juízes opositores
indagaram:
– Mas por que carga de água o «direito
natural» há-de sobrepôr-se à jurisprudência divina?
A resposta dos juízes reformistas
parecia estar na ponta da língua:
– Neste século 21, o mundo caminha
irremediavelmente para a «naturalização». A mudança climática está a destruir
civilizações; colesterol e bilirrubina destronaram facebook e Real Madrid no
topo das palavras mais pesquisadas no google; e a bioquímica tornou-se uma
ciência mais importante do que todas as ciências sociais juntas.
Não se desarmando, os juízes opositores
lançaram um argumento contundente:
–Mas como ousam os senhores declarar a
inconstitucionalidade da morte se o próprio Criador, o Todo-Poderoso, o Omnipotente,
determinou o contrário?
A resposta não se fez esperar:
– O mundo virou ao avesso. Os valores
estão invertidos. O egoísmo sobrepôs-se à solidariedade. A ganância conquistou
direito de cidade. Os bons vão para o inferno. Os maus vão para o céu. Deus
deixou de existir.
Entretanto, já se fazia a festa do
oriente ao ocidente. À medida que a terra girava à volta do seu próprio eixo,
milhões de pessoas regozijavam-se com a tardia mas sábia decisão, enquanto
fogos de artifício tomavam conta do céu planetário subitamente clemente.
– Abaixo a morte! – gritavam uns com uma
ira acumulada de vários milénios.
–Viva a imortalidade! -- replicavam
outros com os dois braços erguidos para cima e os punhos cerrados.
A reação era perfeitamente
compreensível. Desde o início da humanidade, a morte sempre fora uma concubina
traiçoeira. Sendo inevitável, ela nunca foi simpática com os humanos, nem no
seu tempo nem na sua forma. Talvez ela fosse menos ingrata anunciando-se
previamente:
–Fulano-de-Tal, tenho o imenso
desprazer de lhe comunicar que dentro de alguns dias virei viver consigo para
sempre!
Mas não.
O homem de boné branco que acabou de
beijar a mulher e assobia alegremente enquanto desce as escadarias do prédio
para se dirigir ao escritório, está a cinco minutos de morrer. Ele não o sabe.
Ninguém o sabe.
Passava pouco depois das seis da tarde
quando numa pequena cidade de África se iniciou uma discussão. Ela foi detonada
por uma pergunta simples, colocada por um espírito despido de euforia:
– Qual é o efeito prático da declaração
da inconstitucionalidade da morte?
As pessoas calaram se. Um silêncio
perturbador tomou conta do ar já poluído de dúvida. Antecipando qualquer
resignação à ideia da ressureição da defunta morte, alguém lançou no meio da
multidão:
– Ora bolas, que mais podia ser¬?
Acabou a morte!
As pessoas voltaram a entreolhar-se, os
semblantes transfigurados pelo abalar de uma certeza ténue. No alto da sua
sabedoria, um velho baixinho e curvado sugeriu que se tirasse a prova dos nove:
– Liguem as televisões –, gritou com
uma voz trémula e pausada.
A multidão precipitou-se para uma
varanda alí ao lado onde um rapaz corpulento já ligava um televisor de ecrã
plano e gigante. Os olhares fixaram-se no ecrã, rígidos e comoventes, à espera
de saber se no extremo oriente, onde a noite já tinha caído há muito tempo,
tinha havido um caso de morte.
Mal as luzes do ecrã televisivo
cintilaram, viu-se uma maré humana a manifestar-se contra o fim da morte na
cidade do México. Convocada pelos alter mundialistas duas horas antes, através
do facebook, hi35 e hollofilm, a manifestação juntava mais de um milhão de
pessoas que protestavam contra a primazia da morte sobre a pobreza.
Num cartaz que um dos manifestantes
brandia podia-se ler:
– Viva la muerte ! Antes la muerte de
que la pobreza eterna!
No mesmo instante, a manifestação
global varria as cidades de Cape Town, Cairo, São Paulo, Nova York, Londres,
Tóquio e Paris. Nesta última, quando a câmara colocou em grande plano um senhor
vestido de calças gangas e um t-shirt amarrotado, este agarrou as mãos de um
velho mendigo sentado no passeio, ao lado de um grande vasilhame de lixo, e
pôs-se a gesticular diante da câmara com uma raiva contida, como que dizendo:
– O que é que preferem? Que este
mendigo morra um dia, ou que continue a viver assim para sempre?
Entretanto, na pequena cidade de África,
o sol começara a esconder-se no horizonte, deixando para trás ténues raios de
luz vermelha. Espontaneamente, várias pessoas se precipitaram para a pequena
praça da cidade, enchendo gradualmente todo o espaço circundante. Era uma
manifestação pacífica contra a tolerância à morte. Indignados, os manifestantes
jubilavam pelo fim da morte e ouviam discursos apaixonados de pessoas que
antecipavam como seria a vida a partir daquele momento histórico. Quando uma
mulher subiu ao palco e perguntou se a vida eterna não seria cansativa, a
multidão reagiu com fúria dizendo que essa pergunta era uma imbecilidade.
De repente, talvez assustados pelo peso
gigantesco dos sapatos sobre suas cabeças, os ratos começaram a sair dos
esgotos da cidade e a invadirem a praça. Corriam caoticamente de um lado para o
outro e vinham de todos os lados como se haviam sido convocados para uma
manifestação na mesma praça.
Instantes depois, ocupavam cada
centímetro da praça e subiam já sobre os sapatos das pessoas. O pânico tomou
conta da praça. As mulheres gritavam desalmadamente. Os homens sacudiam os pés
e saltavam para logo depois aterrar sobre os corpos moles dos ratos. A fobia
aos ratos dispersou a manifestação dos homens. A correria desenfreada fazia
cair homens e mulheres que se deitavam apavorados sobre os ratos e eram pisados
por outros homens e mulheres em fuga. Durante cinco minutos foi o caos e, no
fim, a praça esvaziou-se ficando nela apenas alguns corpos estatelados no chão.
Um silêncio assombrador voltou a
reinar. As ruas estavam desertas. À distância de meia centena de metros da
praça, dois homens estavam de pé a olhar ao longe para os corpos no chão.
Estarão mortos? Entreolharam-se e, sem dizer nada, perceberam que havia chegado
o momento de tirar a prova dos nove.
Começaram a caminhar vagarosamente em
direção à praça, os corações a palpitarem de medo. Aproximaram-se com passos
hesitantes de um homem que estava alí deitado. A noite já estava a cair.
Curvaram-se diante do homem deitado no chão e, inclinando levemente o corpo para
a frente, debruçaram-se sobre ele, fixando os seus olhos e perscrutando se nele
havia sinal de vida. As pálpebras estavam semi abertas e as pupilas brancas e
estáticas reflectiam as luzes pálidas da praça. Os dois homens entreolharam-se
novamente sem dizer uma palavra, pois ambos perceberam a sentença:
O homem estava morto.
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