segunda-feira, 19 de junho de 2017

O medo de ser livre provoca o orgulho em ser escravo

Quando a dominação colonial se impõe dentro duma terra a primeira preocupação dessa dominação é barrar o caminho à cultura desse povo. Por isso mesmo consideramos (e isso verificou-se, por exemplo, no processo de desenvolvimento de nacionalismo em África, quando se começaram a cultivar poemas e danças africanas para contestar a cultura do país dominador) que o nosso povo, ao pegar em armas para se bater pela sua libertação, estava em primeiro lugar manifestando a sua recusa em aceitar uma cultura estrangeira. Portanto, essa luta é necessariamente um ato cultural, ato cultural que implica essa conclusão, demonstração clara de que temos uma história nossa na qual fomos retirados pelo colonialismo, e estamos decididos a continuar essa história - Amilcar Lopes Cabral

Há no homem um desejo imenso pela liberdade, mas um medo ainda maior de vivê-la. Algo parecido disse Dostoiévski, ou talvez eu esteja dizendo algo parecido com o dito pelo escritor russo.

No entanto, como seres significantes que somos, analisamos as coisas sempre a partir de uma determinada perspectiva e, assim, passamos a atribuir-lhes valor. Dessa maneira, até conceitos completamente opostos, como liberdade e escravidão, podem se confundir ou de acordo com o prisma de quem analisa, tornarem-se expressões sinônimas, como acontece no mundo distópico de George Orwell, 1984, em que um dos lemas do partido – “Escravidão é Liberdade” – é repetido à exaustão.

Não à toa, as boas distopias têm como grande valor predizer o futuro. E em todas elas – 1984, Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451, Laranja Mecânica – há um ponto em comum: a liberdade dos indivíduos é tolhida e, consequentemente, convertida em escravidão. No entanto, através de mecanismos sócio-políticos a escravidão é ressignificada como liberdade, de modo que mesmo tendo a sua liberdade cerceada, os indivíduos entendem gozarem plenamente desta.

Nas histórias supracitadas, embora a maior parte da população esteja acomodada e aceite com enorme facilidade absurdos, existem indivíduos que se permitem compreender as suas reais situações e ousam lutar contra a ordem estabelecida. Esse processo é, todavia, extremamente doloroso, uma vez que é muito mais fácil se acomodar a enfrentar a realidade e todas as consequências dolorosas que enfrentamos invariavelmente quando decidimos sair da caverna, para lembrar Platão.

Posto isso, há de se considerar que ser verdadeiramente livre requer a responsabilidade de encarar o mundo sem fantasias, ou seja, tal como ele é. Dessa forma, existe no homem grande suscetibilidade a aceitar o irreal como real, a fantasia como verdade, a Matrix como o mundo real. Sim, Matrix é um grande exemplo do medo que possuímos de encarar a realidade.

No personagem de Cypher (Joe Pantoliano) encontramos o maior expoente desse comodismo, já que sendo a realidade um mundo destruído, um caos constante, é muito melhor viver na Matrix, onde ele “pode ser o que quiser”, ainda que não passe de uma grande mentira.

Em outras palavras, Cypher representa a ideia de que sendo a realidade algo tão assustador, a ignorância é uma benção, pois sendo ignorante, pode-se comprar mentiras como verdades facilmente, bem como, aceitar a Matrix como realidade e a escravidão como liberdade.

As realidades apresentadas no mundo das artes (ficções, que ironia), refletem a nossa própria realidade, em que, assim como Cypher, temos preferido viver vidas fantasiosas, cercadas de superficialidade e aparências, determinadas pelo hedonismo da sociedade de consumo e, consequentemente, o nosso egoísmo ganancioso buscando galopantemente realizar todos os desejos que impedem de acordarmos de um sonho ridículo.

Apesar de tudo isso, pode-se considerar que de fato é melhor ser um escravo feliz do que um ser livre, triste, inconformado e amedrontado. No entanto, a problemática ganha corpo na medida em que se entende que há coisas que só podem ser feitas sendo o sujeito livre, uma vez que a gaiola é sempre limitadora, sobretudo, aos desejos mais intrínsecos e, portanto, mais latentes e verdadeiros no ser.
Atendendo aos votos formulados pela União das Comunidades de Cultura Portuguesa no congresso realizado em Lisboa sob os auspícios da Sociedade de Geografia;

Considerando a necessidade de fomentar os esforços científicos no sentido de salvaguardar a herança cultural portuguesa das comunidades dispersas pelo mundo;

Usando da faculdade conferida pelo n.º 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo o seguinte:

Artigo único. São aprovados os estatutos da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, que baixam assinados pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Educação Nacional.

Publique-se e cumpra-se como nele se contém.
Paços do Governo da República, 6 de Fevereiro de 1965. - AMÉRICO DEUS RODRIGUES THOMAZ - António Oliveira Salazar - Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira - Inocêncio Galvão Teles.


CAPÍTULO I
Instituição, fins e sede
Artigo 1.º A Academia Internacional da Cultura Portuguesa é dotada de personalidade jurídica para os fins da sua instituição e rege-se pelos presentes estatutos.

Art. 2.º Os fins da Academia são os seguintes:
a) Fomentar os esforços tendentes à investigação, inventário e sistematização das tradições e dos padrões culturais portugueses radicados fora do território português;

b) Fomentar os esforços tendentes à identificação e estudo das comunidades filiadas na cultura portuguesa e radicadas fora do território português;

c) Fomentar os esforços tendentes à investigação da expansão da cultura portuguesa no Mundo;

d) Promover a publicação sistemática em língua portuguesa ou em língua estrangeira da documentação e dos estudos relacionados com os fins indicados nas alíneas anteriores;

e) Cooperar com os organismos que tenham finalidades análogas, em qualquer parte do Mundo.

Art. 3.º A Academia Internacional da Cultura Portuguesa tem sede em Lisboa, na Sociedade de Geografia, que assegurará a secretaria-geral da Academia.

CAPÍTULO II
Organização
Art. 4.º Os académicos agrupam-se nas seguintes categorias:
a) De número;
b) Correspondentes;
c) De mérito.
Art. 5.º Os académicos de número serão limitados a 40, dos quais 15 serão de nacionalidade portuguesa.

§ Único. Os académicos de número serão sempre escolhidos de entre os correspondentes que tenham, pelo menos, três anos de actividade académica.

Art. 6.º Os académicos correspondentes serão em número não superior a 60, dos quais 20 serão de nacionalidade portuguesa, devendo a sua escolha recair em pessoas que tenham dado provas da sua competência pela publicação de importantes trabalhos relacionados com os fins da Academia.

Art. 7.º O título de académico de mérito poderá ser conferido a eminentes publicistas nacionais ou estrangeiros.

Art. 8.º Na eleição dos académicos de qualquer categoria só poderão participar os académicos de número.

Art. 9.º O Chefe do Estado é presidente de honra da Academia.
Art. 10.º Os académicos são obrigados a coadjuvar a Academia em tudo o que lhes incumbe, aceitando os cargos e missões que lhes forem cometidos e encarregando-se da elaboração dos trabalhos que lhes sejam confiados.

Art. 11.º É proibido aos académicos contrariar os fins da instituição; imprimir trabalhos fora das publicações académicas com indicação de provirem da Academia; e criticar trabalhos feitos por encargo da mesma ou a ela apresentados por outros académicos, a não ser nas suas sessões ordinárias.

Art. 12.º São causas de demissão de académico o não cumprimento dos deveres impostos por estes estatutos ou o público e notório mau comportamento moral e civil.

Art. 13.º Considera-se renúncia à situação de académico de número ou de correspondente o facto de não tomar parte ou não mostrar interesse pela actividade da Academia durante três anos ininterruptos, quando o académico não estiver impedido por doença.

Art. 14.º O académico correspondente que passe a académico de número tem obrigação de fazer o elogio do seu antecessor na cadeira que vai ocupar.

Art. 15.º Haverá um presidente e dois vice-presidentes e um secretário-geral, os quais, assistidos de dois vogais, constituirão o Conselho Académico, que terá a seu cargo a administração e a orientação superior da Academia.

Art. 16.º O Conselho Académico, de que só poderão fazer parte académicos de número, cuja residência lhes permita assegurar a gestão administrativa da Academia, será eleito trienalmente pelos académicos daquela categoria.

Art. 17.º A orientação dos trabalhos científicos cabe à assembleia geral, cuja mesa será formada pelo presidente e vice-presidentes do Conselho Académico e pelo secretário-geral.

Art. 18.º A assembleia geral poderá nomear as comissões que julgar convenientes para estudo particular de qualquer assunto.

Art. 19.º Haverá duas publicações académicas de carácter permanente: o Boletim e os Anais.

§ único. O presidente de honra e os académicos têm direito a um exemplar de todas as publicações académicas feitas depois da sua admissão.

Art. 20.º A Academia tem direito ao uso da biblioteca e arquivo da Sociedade de Geografia.

CAPÍTULO III
Disposições gerais e transitórias
Art. 21.º A Academia tem por divisa (ver documento original).
Art. 22.º Os académicos de qualquer categoria gozam de honras e proeminências idênticas às dos sócios das Academias das Ciências de Lisboa e Nacional de Belas-Artes.

Art. 23.º Aos académicos será permitido o uso de insígnias e farda próprias.
§ Único. As insígnias académicas poderão ser usadas com uniformes militares e com quaisquer outras condecorações.

Art. 24.º Os académicos de número, constantes da lista anexa, são considerados os académicos fundadores para os efeitos dos presentes estatutos.

Art. 25.º Para efectivação das disposições destes estatutos haverá um regulamento interno, que será aprovado pelos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Educação Nacional.

Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Educação Nacional, 6 de Fevereiro de 1965. - O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira. - O Ministro da Educação Nacional, Inocêncio Galvão Teles.


Lista dos académicos de número considerados fundadores da Academia Internacional da Cultura Portuguesa

Adriano José Alves Moreira.
António da Silva Rego.
Armando de Freitas Zusarte Cortesão.
Armando Gonçalves Pereira.
Armando Reboredo e Silva.
João da Costa Freitas.
Jorge Dias.
José de Azeredo Perdigão.
José Nosolini Pinto Osório da Silva Leão.
Luís da Câmara Pina.
D. Manuel Trindade Salgueiro.
Virgínia Rau.

Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Educação Nacional, 6 de Fevereiro de 1965. - O Ministro dos Negócios Estrangeiros, Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira. - O Ministro da Educação Nacional, Inocêncio Galvão Teles.
Assim, por mais que a escravidão seja ressignificada, fantasiada e “transformada” em liberdade, sempre haverá pontos em que o indivíduo sentirá necessidade de alçar voos mais altos, os quais, obviamente, não poderão ser realizados, haja vista a limitação das gaiolas, o que implica a insatisfação, ainda que tardia, da condição escrava em que o indivíduo se encontra.

Sendo assim, constatamos que “O medo de ser livre provoca o orgulho em ser escravo”*, posto que para gozar a liberdade é preciso coragem para se arriscar no terreno das incertezas e da luta. E, assim, temos preferido permanecer na caverna, orgulhosos das nossas sombras, já que lembrando outra vez Dostoiévski – “As gaiolas são o lugar onde as certezas moram”. Entretanto, como disse, mais hora, menos hora, nos enxergamos e percebemos que o que nos circunda é falso, de tal maneira que desejamos sair, correr, voar, ser livres.

O grande problema nisso é que quando se acostuma a viver em uma gaiola, quando se é livre perde-se a capacidade de voar, pois as correntes que nos prendem são criadas pelas nossas mentes, de forma que mesmo fora da caverna, continuamos prisioneiros de uma mente que se acostumou a ser covarde e preferiu acreditar na contradição de que ser escravo era o maior ato de liberdade.


*A frase que dá título ao texto é de autoria desconhecida. Se alguém souber a real autoria, por favor, avise-nos.

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