segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Domingos Simões Pereira em entrevista no Odemocrata: “CEDEAO convidará Cipriano Cassamá para divulgar o relatório de Conacry”

[primeira parte da entrevista] O líder do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Domingos Simões Pereira, revelou que o mediador da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) está preparado para convidar o presidente da Assembleia Nacional Popular (ANP), Cipriano Cassamá, acompanhado dos líderes das bancadas parlamentares, para que divulgue o conteúdo do relatório da reunião das negociações de Conakry.

Simões Pereira falava numa entrevista exclusiva para a rúbrica “Grande Entrevista” do semanário O Democrata, sobre a actual crise política, sobretudo no concernente à implementação do ‘Acordo de Conakry’ bem como das divergências internas no PAIGC e da questão do regresso do grupo dos 15 deputados expulsos das fileiras do partido.

Para o presidente do partido libertador, a questão dos 15 deputados dissidentes é uma falsa questão. Explicou ainda que “Os quinze acabaram por ser a solução que o Presidente da República encontrou para justificar a oposição que quis propor contra o meu governo. Ele tentou muita coisa. Começou por dizer que a unanimidade mata a democracia, invocando que não era normal o PAIGC ter o entendimento que tinha com o PRS”.

O Democrata (OD): O partido, através da resolução do Comité Central, fez saber que não participaria no governo de Umaro Sissoco Embaló e que nem permitiria que os seus dirigentes fizessem parte do mesmo. Qual é a estratégia do partido neste momento, sobretudo se ficar fora do governo liderado por Umaro Sissoco?

Domingos Simões Pereira (DSP): Aqui não se coloca uma questão de estratégia, coloca-se sim uma questão de coerência. Penso que o PAIGC é um partido idóneo, maduro e responsável. Os partidos são associações políticas que têm que dizer ao povo que podem contar com uma visão séria, ou melhor, uma postura de responsabilidade em relação as suas obrigações.

A Constituição da República da Guiné-Bissau tem sido vilipendiada ou esfrangalhada nesta legislatura. Nós entendemos que temos a responsabilidade de encontrar soluções que permitam viabilizar a actual legislatura, até a clarificação de determinados dispositivos legais.

Fomos à Conakry com um sentimento de responsabilidade, participámos nas negociações esperando contribuir para ultrapassarmos esta situação. Tal como havíamos feito em Setembro de 2015, quando o Supremo Tribunal de Justiça aprovou um Acórdão favorável àquilo que era a revindicação do PAIGC. Fizemos uma cedência, dissemos: apesar de o Supremo Tribunal nos dar razão, nós compreenderemos se o Presidente diz que não tem condições para trabalhar com A, B ou C.

Agora fomos a Conakry e fizemos as cedências possíveis para encontrarmos uma solução. E quando se chega a uma solução e se assina um acordo, esse acordo é lei para as partes. Nós não podemos aceitar que, de regresso a Bissau, haja um conjunto de peças de teatro que vão no sentido de descredibilizar e fazer tabua rasa daquilo que aconteceu para voltar a dar ao Presidente da República o direito de decidir tal como ele quer.

Hoje muita gente pode continuar a pensar que o problema é Domingos ou o problema é o PAIGC. Eu não tenho dúvidas nenhumas, até porque as circunstâncias nos permitem lembrar o Comandante Fidel Castro que dizia: A história vai nos absolver. Eu digo a história vai fazer-nos justiça. Porque não estamos a lutar por uma questão de lugares, uma questão de entrar para o governo ou de poder beneficiar disto ou aquilo. Não é isso.

Nós estamos na política porque acreditamos num ideal. Nós temos um propósito e o nosso propósito é afirmar um Estado de direito democrático e não pode ser porque eu gosto, porque eu não gosto. Será porque é assim, porque assim é que está certo. Quando há uma entidade que pensa que pode reclamar para si todas as competências e todas as responsabilidades, então estamos a pôr em causa o fundamento da existência do nosso Estado democrático e, portanto, isto devia interpelar a todos. Por isso é que nós dissemos: um acordo é um acordo, quando é visto no seu todo.

Se um dos pontos do acordo é violado, então deixamos de ter o acordo. O Presidente da República vai usar as prerrogativas que pensa que tem e vai tentar implantar suas ideias. Nós no exclusivo e absoluto respeito pela ordem democrática, vamos fazer o uso daquilo que são competências que nos são reservadas. O que nós não queremos é que, perante esta deriva constitucional e democrática, sejamos parte desse jogo.

OD: O PAIGC defende a legalidade constitucional, mas há quem critique o partido (PAIGC) por ter assinado o Acordo de Conakry, que não leva em conta ou que menospreza a Constituição da República da Guiné-Bissau. Quer fazer um comentário sobre isso?

DSP: Quem acha que nós devíamos ser intransigentes no respeito pelos dispositivos constitucionais, devia ajudar-nos a responder àqueles que acham exactamente o contrário…penso que nós, durante todo este processo, tentamos realmente colocar a Constituição, as leis e os princípios democráticos em primeiro lugar. Contudo, há sempre um limite a partir do qual devemos demostrar alguma flexibilidade, por exemplo, nós chegamos à Conakry e durante três dias mantivemos sempre a nossa posição.

Ao quarto dia compreendemos que se saíssemos de Conakry sem um acordo, íamos ser responsabilizados por não o termos facilitado. Sabíamos que, ao termos que escolher um dentre três nomes apresentados pelo Presidente da República, estariamos a violar a nossa constituição. Nada dá ao Presidente da República o direito de ser ele, a propor os nomes para nós escolhermos. Mas a partir do momento em que nós aceitamos ir à Conakry, aceitamos a mediação.

Compreendemos que se saíssemos de Conakry sem escolher um nome, isso seria entendido como uma intransigência da parte do PAIGC, portanto nós fizemos uma cedência. Agora o que eu não entendo é o seguinte: Nós voltamos para Bissau e não ouvimos muita gente questionar o que é que de facto aconteceu em Conakry. Quem é que está a dizer a verdade?

Mas há prossupostos para se chegar à verdade. É preciso perguntar, quem é que levou os três nomes? Alguém tem dúvidas?… todos sabemos que foi o Presidente José Mário Vaz, porque antes de sairmos de Bissau, os três nomes já circulavam na praça pública. Se o Presidente da República levou três nomes, alguém tem dúvidas que o Partido da Renovação Social (PRS) e o Grupo dos 15 deputados estão alinhados com o Presidente da República?!

Se os três nomes não são nomes propostos pelo PAIGC, se o PAIGC voltou de Conakry a dizer que foi retido um nome consensual, se o presidente da Assembleia Nacional Popular diz que foi retido um nome consensual, como é que se pode ter dúvidas que houve realmente a escolha de um nome, só porque a CEDEAO não divulga o nome de forma explícita?!

A CEDEAO não divulga esse nome de forma explícita, porque no início desse diálogo em Conakry, entendeu-se que é preciso respeitar os órgãos de soberania nacionais. Um Presidente da República é um Presidente da República e, portanto escolhido o nome é preciso dar-lhe a prerrogativa de ser ele a anunciar esse nome. Mas já que o próprio Presidente da República não respeitou esse princípio, então nós estamos a incitar a CEDEAO e demais entidades da comunidade internacional para tornarem público a Acta e o Relatório dessas negociações que irá esclarecer as coisas.

OD: Após a pressão dos partidos políticos da Guiné-Bissau, a representação da CEDEAO no país publicou apenas a cópia do acordo em três línguas, onde não consta nenhum nome.

DSP: Mas claro que não consta, estou a dizer que o acordo não chega a esse ponto, porque é uma competência reservada ao Presidente da República. Eu penso que vocês deviam ter também interesse em ter acesso ao código de postura que foi acordado antes do início das negociações. As partes, quando chegaram a Conakry, aceitaram um código de postura e, neste código de postura estava escrito que nenhuma entidade devia divulgar partes ou o tudo aquilo que estava a acontecer. Para quê? Para reservar ao Presidente da República, enquanto primeiro magistrado da Nação, o direito de fazê-lo.

Portanto, se estamos a procurar coisas aonde elas não existem, não encontraremos nada. O que o mediador pode publicar é o acordo. O acordo é público! Porque é que nós falamos em ata ou relatório, porque pensamos que não há ninguém que conduza uma mediação e não elabore uma ata ou um relatório.

Alguém vai perguntar-me, você viu esse relatório? Não, não vi relatório nenhum, porque eu não estava a escrever relatório nenhum! Se eu fosse aqui o vosso mediador entre os senhores para qualquer entendimento, eu facilitaria o vosso encontro, mas no final eu vou ter uma memória de todos os passos que nós demos até chegar ao acordo. O que colocaria na mesa dos senhores seria o acordo a que se chegou.

O que nós estamos a pedir é que a memória do mediador sirva para realmente esclarecer quem está a dizer a verdade em relação a este processo.

OD: Senhor presidente, até onde o relatório e a ata podem sobrepor-se ao acordo assinado e que foi divulgado publicamente?
DSP: Não, nós não estamos a dizer que a ata deve sobrepor-se ao acordo. O que nós estamos a dizer é que o acordo é tanto a parte que ficou escrita, como eventualmente a parte que não ficou escrita. Entre cidadãos íntegros, entre instituições que respeitam a sua palavra não é preciso estar escrito para ser um contrato. Mas há uma coisa que acho que escapa às partes: nós fomos à Conakry numa perspectiva de sinceridade, porque pensamos que todos tínhamos consciência de ter deixado Bissau numa situação de bloqueio.

Nós deixamos em Bissau uma situação de bloqueio. A Assembleia Nacional Popular não estava a conseguir funcionar. O que serve ao PAIGC tentar ser esperto e tentar enganar os outros, se ao enganá-los nós voltaríamos irremediavelmente à situação de bloqueio?! É isso que nós não entendemos. Nós fomos à Conakry, negociamos, chegamos a um acordo e entendemos que com esse acordo iriamos desbloquear a situação. Se acha que ficando com o texto escrito e que vale apenas aquilo que ficou escrito, se pensa que com isso sai a ganhar, desculpem-me dizer que isso é uma esperteza completamente saloia. É uma esperteza saloia porque o acordo entre as partes de um processo bloqueado devia ser realmente de interesse de todos. Porque? Porque é que estamos a negociar?

Nós estamos a negociar porque queremos desbloquear a situação do nosso país. O que serve tentar enganar-me? Digo não…não… se não ficou escrito, eu não tenho nenhuma responsabilidade sobre isso. Aie?! Agora como é que me obriga a ir ao seu encontro?! A memória que estamos aqui a testemunhar em relação àquilo que aconteceu em Conakry é precisamente porque nós sabemos que não só estamos seguros daquilo que estamos a dizer, como também houve entidades que testemunharam o momento e que sabem que foi isso o que aconteceu. Se dizem que não aconteceu, eu compreendo que eles tenham algumas reticências em dizê-lo … porque há um Presidente da República metido no processo, então ninguém quer desrespeitar ou passar a frente do Presidente da República. Se parte do acordo não é observado é porque não há acordo! Não havendo um acordo, voltamos ao ponto de partida, o que significa voltar ao ponto de partida? É voltarmos à nossa Constituição.

O Presidente da República cada vez que demite um governo, devia compreender que o que a Constituição lhe diz é que convide o partido vencedor das eleições para formar novo governo. E ele disse não… eu não posso convidar o partido vencedor para formar novo governo, porque esse partido já não tem a maioria na Assembleia. Não é competência do Presidente da República decidir quem tem essa maioria. Por quê? Porque só se sabe quem tem maioria, aquando da votação na Assembleia Nacional popular. A nossa Constituição não confere essa competência ao Presidente da República.

O Presidente vai dizer que invocou isso na Assembleia, que já há uma nova maioria e uma nova configuração e de seguida vai dizer que o PAIGC não deixou que o programa chegasse à plenária… Afinal, não tem uma nova maioria. A Assembleia Nacional Popular é constituída por todos os órgãos, não é só a plenária. A plenária pode ser o maior órgão. Portanto, é verdadeiramente uma estratégia saloia!

OD: Apesar do Comité Central ter decidido, na sua resolução, que o partido não participaria no governo de Umaro Sissoco Embaló e nem permitiria que os seus dirigentes fizessem parte do mesmo. É possível que o PAIGC receba o Primeiro-ministro Sissoco?

DSP: Com certeza! Como Primeiro-ministro, não! Mas enquanto cidadão, sim. Até invocou ser um militante do PAIGC. O que nós estamos a dizer é outra coisa. Eu compreendo que muita gente quer colocar o acento tónico na figura de Sissoco, como ontem quiseram colocar um acento tónico na figura do Baciro Djá, assim como eventualmente no futuro poderão colocar o acento tónico nas outras figuras. O problema não é esse, não é Sissoco. O problema não é Djá, o problema não é Braima, o problema não é nada disso. Os problemas são as leis e os princípios. Reparem, todos nós, independentemente das funções que exercemos, somos parte desta sociedade. Nós dizemos que a política é também um projeto de sociedade.

OD: Senhor presidente, há um mistério à volta desses documentos. Mesmo os signatários não têm acesso ao relatório?

DSP: Não têm como procurá-lo, porque é um documento interno do mediador. O mediador sabe que está a falar de uma entidade soberana.

OD: O Senhor tem acesso a esses documentos?

DSP: Não, eu não posso ter acesso a esses documentos. O que eu estou a dizer é que um mediador, quando conduz um processo de mediação, tem que elaborar um documento. Agora uma coisa completamente diferente é que se ele pode torná-lo público. O mediador entendeu que devia apresentar o documento exclusivamente à Cimeira dos Chefes de Estado da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Foi esse o seu entendimento. Mas nós, o que estamos a dizer é que alguns dos partidos que tomaram parte na mediação estão a pôr em causa a seriedade do mediador.

É chegado o momento de o mediador tornar público esse documento. Nós sabemos que o mediador está preparado para fazer as duas coisas: O Mediador está preparado para convidar o Presidente da Assembleia Nacional, Cipriano Cassamá, acompanhado dos líderes das bancadas parlamentares, para divulgar, ele, Cipriano Cassamá, o conteúdo do documento. Isso nós sabemos. Sabemos também que o mediador prepara-se para, na próxima Cimeira de Chefes dos Estados da CEDEAO, tornar público o documento.

Não houve uma oportunidade de torná-lo público, porque em Lomé, no Togo, aquando da Cimeira dos Chefes de Estado, o Presidente da República da Guiné-Bissau não se mostrou disponível para participar num encontro no qual o documento seria divulgado, invocando que não se sentia bem. Abandonou Lomé e foi para Lisboa. Foi ali que ouvimos o Encarregado dos Negócios Estrangeiros a dizer que o Presidente não se sentia bem e que estava no hospital.

Mas duas horas depois, estava em casa e no dia seguinte estava a viajar para Bissau. Temos que tratar o Estado como Estado e chega de gozar com o nosso povo, fingindo que é toda a classe política, não. Todos sabem quem está a brincar com a situação do país. Que custe o que possa custar, mas que o resultado possa significar realmente um ultrapassar definitivo deste estado de coisas.

OD: Domingos Simões Pereira é do Partido da Convergência Democrática (PCD) ou do PAIGC? Chegou a ser dirigente ou militante do PCD?

DSP: Eu nunca fui do PCD, nunca. A minha trajectória política acompanhou a minha própria geração e eu não sou da geração do PCD. No período da fundação do PCD não estava cá. Vim de férias e tive a informação sobre o projecto de formação do PCD. Eu nunca fui do PCD, portanto, esta é uma suposição que eu já ouvi e que penso que corresponde a esta deriva nacional, uma tentativa de desacreditar tudo e todos.

Acho que o meu irmão foi, na primeira legislatura da abertura democrática, ou terá sido candidato a deputado pelo PCD. Eu não! Eu nunca tive uma ligação com o PCD. Tenho muitos amigos que são do PCD, eu tenho respeito pelo PCD como tenho respeito por todos os partidos políticos, mas eu não tenho nenhuma ligação com o PCD. Sou exclusivamente do PAIGC, nunca pertenci e nem alguma vez fui simpatizante de qualquer outro partido político.

OD: Qual um dos seus irmãos foi candidato a deputado pelo PCD?
DSP: Camilo Simões Pereira.

OD: Como é que encontrou o PAIGC depois do congresso… o Senhor herdou um partido de vícios?

DSP: Não… eu encontrei um partido com muitas dificuldades, mas eu não posso dizer que isso me tivesse surpreendido. Eu, antes de me candidatar à liderança do partido, eu fiz um diagnóstico do partido e avaliei a situação interna e a visibilidade externa do partido, portanto eu sabia ao que ia…

Digo simplesmente que qualquer líder traz para as estruturas do partido aquilo que ele tem de melhor ou aquilo que ele pode oferecer. O que eu digo é que Amílcar Cabral foi o fundador do PAIGC e ao fundar o PAIGC, propôs uma visão e uma filosofia. Portanto, um líder com uma filosofia, com uma visão e com um futuro. Cabral conquistou uma legitimidade política e uma legitimidade histórica.

Nino Vieira terá sido o substituto de Amílcar Cabral em termos de liderança do PAIGC. Aquilo que Nino Vieira assume e melhor representa no seu consulado foi a sua legitimidade política e a histórica. Já não tanto a parte da filosofia política e já não tanto a sua ideologia, mas de legitimidade, ele tinha.

Carlos Gomes Júnior, a quem substituiu de verdade? Houve sim outros presidentes intermédios.  Mas de verdade, o eleito em 2002 foi Carlos Gomes Júnior e o que Carlos Gomes Júnior trouxe foi uma ideia de algum modernismo. Um modernismo visto da perspectiva de um empresário com capacidade para dar ao partido aquilo que o partido não tinha. O que é que partido não tinha em 2002!? Não tinha financiamento, ou melhor, não tinha a capacidade financeira.

Não teve capacidade de atender às expectativas dos militantes durante muito tempo. A partir do 2002, passamos a ter um líder do partido que se afirmou, fundamentalmente, pela sua capacidade económica e financeira, mas reconhecido como tal. Muitos entendem, dentro do partido, que era isso que fazia falta ao partido. Até porque é preciso lembrar que a abertura política proclamada desde 1990 e a sua efectivação em 1994, consubstanciou-se numa espécie de simplificação desse exercício político.

Para muita gente, quando falamos de política, estamos a falar sobretudo de duas coisas: Estamos a falar de ideologia que instrui o partido e estamos a falar da conquista do poder. Quando nós adotamos a democracia, para muitos nós abandonamos a componente ideológica e assumimos exclusivamente a componente da luta pelo poder. Se ficamos numa perspectiva exclusivista de luta pelo poder, o importante é quem é que nos dá as munições importantes para podermos conquistá-lo.

Nessa altura, a avaliação da grande maioria dos militantes do partido era que o meu presidente, Carlos Gomes Júnior, trouxe exactamente aquilo que o partido não tinha. É nessa perspectiva que eu digo que a minha chegada ao partido vem representar uma nova ruptura em todo esse processo, porque eu não tenho nem legitimidade histórica e não tenho nem legitimidade política e nem tenho dinheiro para dar ao partido.

Afinal, o que tenho para dar ao partido?…eu digo que tenho para dar ao partido um retorno à sua ideologia. Eu proponho ao partido ideias no sentido de ancorar o partido à uma filosofia política de princípio de esquerda, igualitária, inclusiva e de desenvolvimento, mas isso tem que ser feito com o tempo e tem que ser feito com muito trabalho.

OD: Há quem diga que foi aí que começou a sua ruptura interna no partido porque o senhor não tem dinheiro. É verdade que o choque começou aí?

DSP: Eu penso que o choque tem a ver não só com o facto de eu não ter dinheiro e não poder dar dinheiro. O choque tem a ver, sobretudo com o facto de os que tinham dinheiro pensarem que deviam ser os substitutos legítimos do presidente do partido que tinha sido afastado. Em 2012, quando Carlos Gomes Júnior foi afastado na sequência de um golpe de Estado, havia dentro do partido militantes, dirigentes que entenderam que tinha chegado a sua vez.

Porque se a lógica é de concorrência através de argumentos como recursos financeiros, então eles estariam melhor preparados e na linha de sucessão. Portanto, eu chego à Guiné e regresso ao partido. Era quase como alguém que veio de fora. Portanto, visto nessa perspectiva de concorrência de quem tem capacidade, sobretudo financeira, é que deveria assumir o partido, então eu não deveria candidatar-me. Contudo eu entrei na candidatura, apresentei um projecto político e esse projecto foi mobilizador e isso representou um grande choque para muita gente.

OD: Não pensou que em algum momento poderia ter os problemas que tem hoje?

DSP: Não…eu penso que o problema não é meu. Penso que o problema é do país e da sociedade. Eu penso que este é um problema que nós precisamos enfrentar. Pode não ser o Domingos e pode não ser o Nhaga, mas alguém vai ter que enfrentar essa situação. A viabilização da sociedade através de recursos financeiros é insustentável e, é uma simples miragem. Todos acreditamos que a solução através do atendimento das necessidades imediatas é a fórmula que melhor funciona. Ora, em termos de partidos políticos e em termos de projectos de especificidade, isso é uma miragem. Se o candidato à liderança tivesse a capacidade de dar a todos tudo aquilo que cada um ambiciona, não haveria qualquer tipo de problemas. Ele seria o nosso melhor líder.

O problema é que por definição você nunca tem o suficiente para dar a todos tudo o que querem e, portanto cada vez que consegue atender às necessidades e expectativas de 5 ou 10 pessoas, ficam centenas por atender. Eu acredito que a solução não é dar. A solução para mim é criar oportunidades para que todos possam aceder (e resolver as suas necessidades), dependendo do seu empenho, dependendo da sua capacidade e dependendo da sua inteligência.

OD: Podia explicar-nos de uma forma sintética a origem da crise entre a direcção do partido e o grupo dos 15 deputados?

DSP: Os 15 é uma falsa questão! É uma falsa questão… os quinze é uma falsa questão. Os quinze acabaram por ser a solução que o Presidente da República encontrou para justificar a oposição que quis propor contra o meu governo. Ele tentou muita coisa. Começou por dizer que “a unanimidade mata a democracia”, invocando que não era normal o PAIGC ter o entendimento que tinha com o PRS.

Invocou muitas coisas, invocou a corrupção e, foi tentando muita coisa até chegar aos 15. Os quinze acabaram por servir os propósitos do Presidente da República. Os 15 não existiam.

É muito importante, quando diz – quando é que nós chegamos a este ponto de rutura interna dentro do partido? Nós chegamos à Cacheu para um congresso. No Congresso de Cacheu havia cerca de oito (8) candidatos, todos convencidos que tinham condições para liderar o partido, porque o presidente tinha sido afastado. Nas vésperas da ida para Cacheu ou mesmo em Cacheu acabou por acontecer uma coisa interessante. Seis (6) candidatos decidiram juntar-se à volta daquilo que se chamou na altura de Aliança, dois (2) outros candidatos ficaram de fora.

Entretanto, quando chegamos a Cacheu, qual era o entendimento daqueles que entraram na lista da Aliança – é dizer, nós vamos seguir um determinado padrão de comportamento dentro do partido, o que significa que se algum de nós vencer dentro do partido vai promover uma distribuição democrática dos diferentes cargos dentro do partido. Na altura ficaram de fora o Braima Camará e o Aristides Ocante da Silva.

Fomos ao congresso, houve votação e eu fui eleito presidente do partido. Ao ser eleito presidente do partido, obviamente que eu juntei-me ao grupo dos cinco candidatos que desistiram a meu favor. Entretanto, eu considero que foi perfeitamente normal que eu quisesse criar uma estrutura directiva do partido que integrasse todos os candidatos que desistiram ao meu favor, mas eu fiz um pouco mais. Eu convidei Braima Camará a apresentar propostas para nomear elementos que o apoiaram para o Bureau e o Comité Central.

Onde é que houve divergências? A divergência aconteceu na própria perceção dessa divisão. Para o Braima Camará, em Cacheu só houve dois candidatos, porque quando os cinco (5) desistiram a meu favor, ele considerou que esses já não eram candidatos, porque desistiram. E portanto, assim que eu ganhei o congresso, ele achou que, quando falei de integração significou que nós deveriamos dividir a nomeação dos elementos nos órgãos do partido, quase que de forma equitativa. Ele devia ter 45 por cento e eu devia ter 55 a 60 por cento. Mas essa não era a minha perceção! A minha perceção e daqueles que saíram como vencedores em Cacheu, é que eu ganhei sim, mas eu ganhei, pertencendo a uma Aliança.

Portanto, todos os outros que desistiram para entrar na Aliança, era perfeitamente normal que tivessem uma quota para colocar os seus apoiantes na direção do partido. A primeira grande discussão foi essa. Quando ele disse que os meus apoiantes foram preteridos, não é verdade. O que aconteceu foi que ele teve cerca de vinte e tal por cento de presenças nos órgãos do partido e ele gostaria de ter quarenta e cinco (45). Mas se ele tivesse 45%, teria mais gente que eu, porque eu tive que distribuir esses cargos a vários elementos (da Aliança).

A situação continuou. Chegamos à Bissau e tive muitas reuniões com o Braima Camará. Propus-lhe que como é empresário, eu pensava que nós poderiamos entendermo-nos. Apoiá-lo-iamos vamos naquilo que fazia, porque ele é empresário. Que deixasse que as estruturas do partido realmente funcionassem. Ele não concordou comigo, achou que devia candidatar-se até porque com a escolha do José Mário Vaz como candidato presidencial, ele achou que tinha capacidade e força para impor-se dentro do partido. E ele foi, cada vez que havia uma candidatura apresentava-se e perdia. Depois dizia que estavamos a juntarmo-nos contra ele, pronto, foi este sentimento que foi fazendo mossa.

OD: Havia outros motivos para essa ruptura?

DSP: O grande momento, o grande elemento de ruptura foi o famoso FUNPI que a Câmara do Comércio Industria, Artesanato e Serviços (CCIAS) considerava como uma taxa paga pelos empresários. E que a CCIAS tinha o direito de receber essa taxa. Eu tinha uma perceção completamente oposta. O FUNPI não é uma taxa, o FUNPI é um imposto, sendo um imposto, a única entidade que tem competência para cobrar um imposto num país é o Estado. Até nos países mais liberais do mundo, os Estados Unidos da América, a Inglaterra e outros, ninguém delega ao setor privado a cobrança de impostos.

Às vezes as pessoas não têm ideia daquilo que estamos a falar. Estamos a falar de o Estado entregar a um, dois ou três elementos do setor privado, valores extraordinários. Estamos a falar de os elementos do setor privado tirarem por mês qualquer coisa como três a quatro mil milhões de francos CFA, que nem chegam a justificar. Estamos a falar não só da taxa de exportação da castanha de cajú, estamos a falar da taxa de exportação de outros produtos e de taxa de importação de produtos alimentares.

Quando nós começámos a pedir justificativos dos valores que eles recebiam, entenderam que estávamos a pôr em causa os direitos conquistados. Cheguei até a dar um exemplo de forma pública: eu tinha ido ao hospital, eu costumava visitar os hospitais. Criei um fundo para tentar acompanhar aquelas famílias mais carenciadas, porque encontrei casos em que havia pessoas que não medicavam, porque não tinham 15 mil francos CFA.

Aconteceu um caso muito concreto. Uma dirigente do PAIGC sentiu-se mal numa reunião do Comité Central e foi levada ao hospital. Quando a reunião terminou por volta da meia-noite, fui ao hospital visitá-la, felizmente, ela já estava a dormir, mas havia uma mulher a chorar copiosamente e perguntei o que se passava. Disseram-me que a mulher estava a chorar porque há quatro dias que não tomava a sua medicação. E quanto é que custava? Quinze mil francos CFA, disseram. Disse que não era normal. Como é que um Estado não conseguia atender uma cidadã que necessitava de 15 mil e está a oferecer a outros cidadãos doze mil milhões de francos CFA por ano, correspondentes a 24 milhões de dólares? O que é que justifica isso?

Mas eu não me coloquei na posição de dono e senhor de tudo, dizendo: a partir de agora eu faço como quero. Pedi uma auditoria. Assim que auditoria foi feita, as pessoas escreveram cartas para dizer que não iam colaborar com a auditoria, porque não estavam de acordo com a sua realização. Você imagina que um Estado que não pode fazer auditoria as suas próprias contas!

Porquê é que nós todos, enquanto cidadãos, não pedimos a apresentação de contas a todos? Eu estou aqui, eu exerci uma função de Primeiro-Ministro. Fui acusado de muita coisa, pedi que as pessoas apresentassem as provas disso. Da mesma forma, eu pedi que as pessoas que geriram os fundos que tiveram proveniência pública que também apresentassem (as suas contas). Porque é que isso tinha de ser razão de conflito direto entre uns e outros? O dinheiro é de nós todos, porque é que tinha que ser gerido por uns e não por outros?

Já houve momentos em que nos acusaram, dizendo que o governo do Domingos Simão Pereira é que tomou o dinheiro do FUNPI e utilizou-o. Não aconteceu nada disso. O que aconteceu foi que eu dei instruções para que o ministério das finanças não pagasse mais nenhum franco do FUNPI…não pagar! Mas a pressão foi tanta. Houve uma altura em que a Câmara do Comércio mandou buscar mulheres no interior, porque deviam ir às feiras de Dakar e Abidjan. E elas ficaram aqui acampadas, a espera que o governo disponibilizasse essa verba para poderem viajar. Isso foi um método de pressão. Para que depois se pudesse dizer às mulheres se elas não fossem a Dakar e Abidjan, era porque o governo não queria entregar-lhes o dinheiro. De tanta pressão, o ministro das finanças acabou por ceder e entregou um montante superior a quatrocentos e vinte milhões (420.000.000) de francos CFA.

Desses 420 milhões disponibilizados, nós sabemos que elas utilizaram cerca de 80 milhões nas feiras, 20 milhões foram gastos na gestão corrente da câmara e os restantes trezentos milhões não foram justificados. Foram levados para parte incerta e ninguém prestou qualquer tipo de contas. O que foi que eu decidi? Decidi, enquanto chefe do governo, ir ao Ministério das finanças, verificar quanto é que havia na conta. Mandei pagar a todas as instituições internacionais com quem tínhamos dívidas, a todas. Pagámos uma média de 200 a 300 mil dólares a cada uma dessas instituições. Eu não peguei nesse dinheiro e meti noutro sítio! Não, paguei as dívidas públicas que nós tinhamos.

OD: Qual era o montante exacto utilizado no pagamento das dívidas?

DSP: Não conheço o montante exacto, eu sei que estaria em causa cerca de sete ou oito mil milhões de francos CFA, o que corresponde a cerca de 16 milhões de dólares. Sei que pagamos a todas as instituições um valor básico que permitiu-nos, de fato, prepararmo-nos para a mesa redonda e chegar à mesa redonda numa situação de verdadeira solvência, porque deixamos de ter luzes encarnadas e passamos a ter luzes verdes o que criou um ambiente de diálogo com a comunidade internacional.


Continuação da entrevista na próxima edição.

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